Adalberto Fazzio: Para formar cientistas do século XXI
Físico do CNPEM fala dos desafios para criar curso de graduação interdisciplinar
Uma ideia na cabeça, um grupo animado nas mãos e infraestrutura de alta qualidade. A depender da proposta que começou a se desenrolar na prática em Campinas, no interior de São Paulo, o filme começa a ser protagonizado por 40 alunos que sonham, antes de mais nada, em serem cientistas protagonistas no país. Apesar de ser rodado no Brasil, onde nem sempre verbas e programas são perenes, ele tende a apresentar um final feliz.
O palco principal da história é o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), uma organização social vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Desde o início de 2022 é nas instalações da instituição que a Ilum Escola de Ciência começou a funcionar. Na prática, o objetivo da iniciativa é consolidar uma escola de graduação voltada para a formação de profissionais aptos a atuar em áreas que exigem sólida base científica e tecnológica.
“Na prática é uma faculdade, um curso superior, um bacharelado em ciência e tecnologia aprovado por todos os órgãos oficiais com nota máxima. Estamos funcionando desde março de 2022 e, para a entrada dos primeiros 40 alunos, tivemos a inscrição de 980 candidatos”, afirma o físico Adalberto Fazzio, diretor da escola e um dos idealizadores da Illum.
Com décadas de carreira, o cientista brasileiro sempre plantou a ideia da transdisciplinaridade por onde passou. “Nossa ideia é formar um pesquisador de alto padrão. E temos todas as condições no CNPEM para isso”, diz Fazzio.
Em linhas gerais, o plano pedagógico da Ilum baseia-se em um ensino de ciência aprofundado e inovador, fundamentado em metodologias ativas de ensino, aliadas a professores experientes e dedicados e a uma infraestrutura diferenciada. Segundo Fazzio, os alunos que chegarem ao fim da jornada vão ser capazes de enfrentar problemas interdisciplinares, a partir de uma formação sólida em linguagens matemáticas e de computação. Além do conhecimento em ciências da vida e da matéria, humanidades e empreendedorismo. Ou seja, conhecimento voltado para o hoje e, principalmente, para o amanhã.
Como explica na entrevista a seguir, Fazzio também destaca a sinergia entre a Illum e o CNPEM, um dos principais pólos de ciência e tecnologia do país onde funciona o projeto Sirius (fonte de luz síncrotron de última geração), como essencial para o sucesso da empreitada.
Qual a inspiração para a criação da escola?
Adalberto Fazzio – Nós queremos que os alunos aprendam a pensar com suas próprias cabeças, tenham seus próprios projetos e conheçam a sociedade. Eles precisam perceber o que o setor privado, governamental e a sociedade necessitam. Existem vários exemplos na área da saúde, meio ambiente que mostram a necessidade de uma visão interdisciplinar. Estamos em um momento em que temos muitas pessoas passando fome, falta de energia, falta de água, poluição ambiental. Às vezes, temos que ficar um pouco olhando o que vale a pena e deixar outras coisas para poucos olharem.
A ideia teve algum modelo específico do exterior ou aqui mesmo do Brasil?
Fazzio – Isso envolve uma discussão longa que vem desde o final da década de 1980, começo da de 1990, da Academia Brasileira de Ciências. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) coordenava e eram feitas muitas discussões. A Universidade de São Paulo (USP) chegou a criar o curso de Ciências Moleculares mas, enfim, pelo menos para mim não foi o que eu esperava. Era professor da USP também e fui convocado, em 2006, para ser reitor, por um intervalo de tempo, da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Lá havia um modelo um pouco diferente, obviamente desse aqui agora, mas era também transdisciplinar e havia um bacharelado em ciência e tecnologia. É um modelo que continua lá, que nasceu com outro na Universidade Federal da Bahia (UFABC) e, hoje, que eu saiba, existem 12 universidades com esse tipo de bacharelado em ciências. A nossa intenção aqui foi ver o que a gente conseguia avançar do modelo. Não quero dizer que o nosso é melhor ou pior, mas tendo a afirmar que ele é mais conectado com o amanhã. Uma coisa importante que temos, que faz toda a diferença, é um ambiente bastante saudável para quem quer ser cientista.
Em termos de metodologia, como essa visão sistêmica é transmitida para os alunos?
Fazzio – Todas as aulas e os processos de ensino envolvem a metodologia ativa. Os alunos ficam em mesas com cadeiras e não tem a figura do professor fazendo uma exposição tradicional. Todos já sabem o que professor vai querer na aula, porque eles recebem tudo por meio de uma plataforma. Com isso, pode-se focar na formação em matemática, física, química e biologia. Sempre de forma muito conectada com o que eles estão fazendo. Por exemplo, hoje é importante você, nas áreas de saúde e medicina, processar grandes quantidades de dados a partir do conhecimento em machine learning e inteligência artificial. Ou então, enxergar a estrutura de algum tipo de vírus que está no laboratório. Isso exige fortemente conhecimentos de ciência de dados.
Claro que tem aluno que vai preferir estudar informação quântica. A grande diferença aqui é que, como não temos matérias eletivas, todo mundo faz tudo. Como todos ficam o dia inteiro no curso e ele já é interdisciplinar, não preciso segregar a forma de transmitir o conhecimento. Essa é uma das ideias principais da escola.
Dentro dessa filosofia, como é o dia a dia do aluno?
Fazzio – Os alunos ficam aqui por três anos, em tempo integral. Chegam às 8 horas e ficam até às 18h. Para aqueles que querem, e uma grande maioria aceitou, existe também o curso de inglês, que consideramos essencial. Dos 40 ingressantes nessa primeira turma, 38 estão no curso dado por uma escola contratada do mercado. O foco total da formação está em muita matemática, em ciência de dados, como já comentei.
De cara, aprende-se o que se necessita de cálculo. Apesar do curso todo ser baseado em projetos, é no segundo semestre que o aluno vai de fato começar a executá-los. É preciso sentar no laboratório, caracterizar uma nanopartícula, saber se ela é tóxica ou não e assim por diante. Em paralelo, também são oferecidas aulas de biologia, física e humanidades.
No caso específico das humanidades, qual é a proposta?
Fazzio – Os estudantes têm aulas de filosofia, sociologia, ética e artes. Uma das atividades, por exemplo, é uma visita ao Museu de Arte de São Paulo (MASP). Dos 40 alunos, apenas uns cinco ou seis conhecem São Paulo. Apenas o fato de entrar no MASP será interessante para muitos deles. Eles vão lá, terão que fazer relatórios e, depois, vão em outras atrações culturais na região da avenida Paulista. Todas as partes estão conectadas. No primeiro semestre, por exemplo, eles tiveram um conjunto muito grande de palestras com pesquisadores do CNPEM, explicando de uma forma muito introdutória como funcionam os equipamentos dos laboratórios, mostrando as fronteiras das pesquisas. Toda semana também chamamos pesquisadores do mercado para falar com eles.
Quer dizer que existe uma imersão completa?
Fazzio – Eles recebem moradia de graça, cartão-alimentação. Procuramos dar todas as condições de aprendizado. É um curso pesado. Como são 40 vagas, em três anos, esperamos já ter 120 pessoas aqui se ninguém deixar o curso.
E como são feitas as seleções dos professores?
Fazzio – São poucos professores. Temos nove professores, todos jovens, com pós-doc e uma boa formação. Todos mostraram interesse muito grande em fazer parte do projeto. Eles continuam fazendo as pesquisas deles, que devem estar relacionadas a alguns dos interesses do CNPEM. Temos um foco grande nas áreas de saúde, meio ambiente, energia e materiais quânticos. Os pesquisadores do CNPEM não são professores, mas têm uma participação na fase dos projetos a serem desenvolvidos pelos alunos da Ilum.
Pensando no futuro, até que ponto podemos imaginar que essas sementes que estão sendo plantadas nesses jovens vão se espalhar pelo Brasil?
Fazzio – Fui professor no Instituto de Física da USP durante muito tempo. Foram 38 anos lecionando lá. Os nossos governos não conseguem fazer como os norte-americanos, por exemplo, ou os chineses, habituados a fazer pesquisa orientada à missão. A partir do momento que começarmos, aqui no Brasil, a ter algo mais dirigido em termos de recursos financeiros para, por exemplo, estudar a Amazônia, as coisas podem começar a se modificar.
Nos Estados Unidos, a pesquisa orientada deve ser da ordem de 80% do que se faz de ciência. No Brasil, deve ser de 20% a 25%. É muito pouco. Não adianta o poder público lançar um programa apenas para fins de propaganda. E dentro das universidades também é difícil mudar a cultura. É preciso fazer algo de fora para dentro das universidades, e não o contrário. Já em termos de interdisciplinaridade, é comum ver programas europeus em áreas estratégicas, como nanotecnologia, a interação entre biólogos, físicos, químicos e engenheiros. Falta isso no Brasil.
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