Paradoxo antiviral
Molécula do sistema imune pode explicar por que pessoas com Down são, ao mesmo tempo, mais resistentes e mais vulneráveis a infecções virais
Uma equipe de pesquisadores dos Estados Unidos pode ter desvendado o mecanismo que torna as pessoas com síndrome de Down ao mesmo tempo mais resistentes e mais vulneráveis a infecções virais. O processo parece estar ligado à sinalização do interferon do tipo 1. Essa molécula, uma peça importante do sistema imune, seria capaz de agir com maior ou menor intensidade em tais pacientes por causa da duplicação do cromossomo 21, que desencadeia a síndrome durante o desenvolvimento embrionário.
“Em geral, um excesso de processos inflamatórios equivale a uma doença autoimune, enquanto a supressão imune normalmente corresponde a uma grande susceptibilidade a infecções”, diz o coordenador do estudo, Dusan Bogunovic, da Escola de Medicina Icahn, ligado ao Hospital Monte Sinai, em Nova York.
“O estranho é que as pessoas com síndrome de Down apresentam tanto muita inflamação quanto a imunossupressão, o que, de certo modo, é um paradoxo. No nosso trabalho, descobrimos como isso é possível.” Bogunovic e seus colaboradores publicaram o trabalho sobre o tema em edição recente da revista especializada Immunity.
Nos pacientes com a síndrome, é comum que ocorram duas situações aparentemente contraditórias. De um lado, a frequência com que eles têm infecções de vários tipos parece ser significativamente inferior à da população geral. Isso vale para doenças como influenza A, herpes-zóster e infecções intestinais.
No entanto, uma vez infectados por algum patógeno, os pacientes com Down muitas vezes enfrentam risco aumentado de complicações, hospitalizações e morte. Isso parece valer especialmente para vírus que causam doenças que afetam o trato respiratório, como o vírus sincicial respiratório e o causador da Covid-19.
Antes da pandemia iniciada em 2020, a mortalidade de pessoas com Down causada por infecções ficava entre 20% e 40% dos óbitos, enquanto não passava de 4,5% no resto da população.
Parte dessa diferença na vulnerabilidade a problemas respiratórios provavelmente está ligada a anomalias de formação do trato respiratório típicas da anatomia singular de quem tem síndrome de Down. Entretanto, os autores do novo estudo demonstraram também que a cópia extra no cromossomo 21 que caracteriza o genoma dessa população faz com que eles carreguem versões duplicadas de genes importantes para o funcionando do interferon do tipo 1.
Esses genes codificam receptores aos quais a molécula se liga na superfície das células. Portanto, assim que uma infecção viral é detectada pelo organismo, as células das pessoas com Down estão mais aptas, de início, a reagir ao patógeno recém-chegado por meio da atividade do interferon. Foi isso o que mostraram experimentos conduzidos por Bogunovic e seus colegas usando, por exemplo, culturas de células derivadas de pessoas com a síndrome.
A questão é que as alterações não ficam restritas a uma presença maior dos receptores de interferon. Análises dos padrões de ativação dos genes nas células oriundas dos pacientes com Down indicam que o papel dos receptores afeta uma série de outros genes da mesma via regulatória do interferon do tipo 1. Paradoxalmente, isso acaba tendo um efeito negativo sobre a capacidade de enfrentar infecções virais.
Como o excesso de ativação do interferon pode ter efeitos negativos, desencadeando processos inflamatórios nocivos, o organismo tem salvaguardas que mitigam a sinalização dessa via. Uma delas é a proteína USP18. Em indivíduos com Down, tudo indica que esse processo ocorre de forma exagerada após a primeira ativação intensa da via do interferon de tipo 1.
Assim, quando determinado vírus volta a invadir o organismo desses pacientes, as defesas estão mais fracas do que da primeira vez, o que produz os episódios mais severos de infecção, com todos os riscos associados a eles. Cria-se assim uma alternância entre o que os pesquisadores chamam de hiperrespostas e hiporrespostas do interferon de tipo 1.
“Ainda precisamos de muito mais trabalho para entender as complexidades do sistema imune nas pessoas com síndrome de Down. Nesse trabalho, explicamos em parte a susceptibilidade a doenças virais severas, mas essa é apenas a ponta do iceberg”, arremata Louise Malle, primeira autora do estudo.
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