Magnetismo contra câncer ósseo
Nanomaterial desenvolvido no Brasil pode aprimorar tratamento de tumores por meio de hipertermia magnética
Um novo material formado por minúsculas partículas de óxido de ferro e de vidro bioativo, compatível com o corpo humano, pode resultar em um tratamento alternativo contra o câncer ósseo. Esse nanocompósito apresenta duas vantagens: tem potencial de ser usado na hipertermia magnética – uma terapia capaz de matar células tumorais por superaquecimento – e pode facilitar a regeneração do tecido ósseo afetado. A caracterização do material foi publicada na revista Biomaterials Advances por pesquisadores do Einstein e das universidades Federal do ABC (UFABC), Estadual de Campinas (Unicamp) e de São Paulo (USP). O estudo também contou com a colaboração de cientistas da Itália e da Alemanha.
Na hipertermia magnética convencional, as nanopartículas são injetadas na corrente sanguínea na região do tumor. Em seguida, são agitadas por meio de um aparelho que gera um campo magnético alternado com frequências de intensidades adequadas para o tratamento. Com a movimentação, as nanopartículas são aquecidas a temperaturas que variam de 42 a 45 graus Celsius (oC). O calor é suficiente para eliminar células cancerígenas, sem prejudicar as saudáveis, que são mais resistentes.
No caso do novo nanomaterial, as partículas de óxido de ferro – à base de magnetita, a mesma presente nos ímãs de geladeira – são revestidas por vidro bioativo. “Os elementos que foram esse vidro são silício, cálcio e fósforo”, explica a engenheira de materiais Juliana Marchi, pesquisadora da UFABC e autora principal do artigo. “Esses componentes liberam substâncias semelhantes ao nosso tecido ósseo e, por isso, auxiliam sua regeneração.”
Vale ressaltar que, por enquanto, a técnica da hipertermia magnética é restrita ao tratamento experimental de glioblastoma, um tipo grave de tumor que atinge o sistema nervoso central. A terapia ainda se restringe a poucas pessoas e é realizada de forma complementar apenas na Alemanha. No entanto, seu potencial para auxiliar no tratamento de outros cânceres, como aliada à quimioterapia e à radioterapia, tem sido amplamente estudado, inclusive no Brasil.
Há 15 anos, o grupo coordenado por Marchi investiga e aprimora as propriedades do vidro bioativo, especialmente sua capacidade de acelerar a reconstrução óssea. “Esse tipo de vidro também pode ser usado, por exemplo, em próteses odontológicas ou em enxertos médicos”, ressalta a pesquisadora.
Testes e mais testes
O estudo interdisciplinar contou com a participação de químicos, físicos, biólogos e odontologistas e foi dividido em três etapas. Primeiro, a equipe da UFABC desenvolveu o compósito biocompatível, com alto poder de magnetização. “Para isso, empregamos uma nova metodologia de síntese de materiais, elaborada por nossos pesquisadores. A partir disso, foi possível obter compostos que não formassem cristais em seu processamento, tornando o método mais eficiente”, conta Marchi.
O passo seguinte foi submeter o material a testes funcionais nos laboratórios do Einstein, a fim de avaliar seu potencial de aquecimento em temperatura ideal para o tratamento, reproduzindo as condições necessárias em uma clínica médica.
“O compósito chegou a 42 oC em questão de segundos”, informa o físico Lionel Gamarra, coordenador do Laboratório de Nanobiotecnologia para Estudos Pré-Clínicos do Einstein. “Quando injetado em uma pessoa, o material leva mais tempo para aquecer. Ainda assim, mostrou sua capacidade de ser utilizado na terapia.”
Na terceira etapa, os pesquisadores avaliaram se o nanocompósito poderia auxiliar na regeneração dos ossos. Foram feitos testes in vitro em células-tronco extraídas da medula óssea de camundongos, também com resultados promissores.
De acordo com Gamarra, o vidro bioativo não interage com as partículas magnéticas e, por isso, o risco de causar reações adversas é baixo. “Depois da aplicação, parte dele pode ser absorvida pelo organismo, enquanto as partículas magnéticas são eliminadas do corpo em uma ou duas semanas.”
Ressalvas
O biomédico Ricardo Bentes de Azevedo, professor da Universidade de Brasília (UnB), que não participou do estudo, observa que, no caso dos tratamentos de câncer ósseo, duas questões precisam ser melhoradas, não necessariamente por meio de novos compósitos.
“A primeira é o aumento da magnetização, por meio de aprimoramento do controle da temperatura final a ser obtida no procedimento.” A outra, destaca Azevedo, é a necessidade de aumentar a biocompatibilidade para a formação de novo tecido ósseo, no lugar do tecido lesionado pelo tumor.
Para o pesquisador da UnB, o novo compósito pode ajudar a aperfeiçoar tratamentos contra o câncer. No entanto, faz uma ressalva: “ainda precisam ser feitos testes em animais e em humanos, para atestar essa possibilidade.”
Segundo Marchi, o nanocompósito deverá agora ser submetido a avaliações de desempenho sob o efeito de campo magnético. “No futuro, esperamos submeter o material a testes pré-clínicos, em animais, de modo a corroborar os achados da fase experimental do estudo.”
Os testes devem ocorrer no Laboratório de Nanobiotecnologia do Einstein, que integra o Sistema Nacional de Laboratórios em Nanotecnologias (SisNano), do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Nele, Gamarra lidera outras pesquisas para refinar tratamentos com hipertermia magnética.
Em uma das frentes, ele trabalha no desenvolvimento de bobinas adaptadas – as peças que ficam próximas ao corpo do paciente, na região do tumor, e que induzem o magnetismo na região – para que sejam usadas no aparelho indutor de campo magnético. De acordo com Gamarra, esse é outro passo fundamental para tornar a magneto-terapia uma realidade no tratamento do câncer ósseo.
No laboratório ele e sua equipe desenvolveram uma peça de formato reto, com o tamanho aproximado de um palmo, diferentemente das convencionais, que são redondas. Para isso, firmaram parceria com uma empresa europeia especializada em soldas de embarcações, que ajudou a desenvolver soldas específicas para os pesquisadores.
“De um lado, a professora Juliana Marchi, da UFABC, conduz a elaboração de novos materiais. Do outro, trabalhamos no aprimoramento magnético. As duas coisas são importantes e esse tipo de colaboração é essencial”, diz Gamarra.
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