Cerco aos genes
Estudo busca identificar como alterações genéticas consideradas de risco para o autismo interferem no desenvolvimento neurológico
O transtorno do espectro autista (TEA), pelo conhecimento científico acumulado em décadas, apresenta uma arquitetura genética extremamente complexa e heterogênea. Modelos mais recentes indicam que a somatória de variantes genéticas raras e comuns contribuem para moldar o fenótipo, com muita variabilidade, dos pacientes. Por isso, cientistas de várias partes do mundo tentam identificar genes e vias neurobiológicas que podem ajudar a explicar o autismo.
“No caso do modo oligogênico de herança para o TEA, o que temos é a ação de dois ou mais genes alterados que, individualmente, são insuficientes para causar o fenótipo clínico. São genes que agem de forma aditiva ou sinérgica para resultar no transtorno”, afirma a bióloga Andrea Laurato Sertié, pesquisadora do Einstein.
O trabalho, publicado na revista Translational Psychiatry, foi feito por um grupo de pesquisadores brasileiros e canadenses e liderado pela cientista brasileira. O estudo avança exatamente na explicação de como alterações genéticas consideradas de risco para o autismo interferem no desenvolvimento neurológico. É mais um passo para desvendar a arquitetura intrincada da doença.
“Primeiro, analisando o DNA de um único paciente, nós identificamos genes que atuam nos canais de cálcio e na via da relina, proteína que controla o funcionamento das sinapses”, afirma Sertié. Ao aumentar a pesquisa dos mesmos genes para outros indivíduos com autismo e de um grupo controle, o quebra-cabeça começou a se formar.
Foram analisados dois conjuntos amostrais de material genético. Um brasileiro, com 861 amostras, sendo 219 com TEA, e outro de um banco de dados canadense, com 11.181 amostras, sendo 5.102 com TEA. Neste último, as mesmas mutações estavam presentes em sete amostras, enquanto foram identificadas duas nos genomas do Brasil – mutações, inclusive, que não estavam presentes no material genético dos pais.
Nem sempre são os mesmos genes, explica Sertié, mas as vias neurobiológicas que eles comandam são sempre as mesmas. São as variantes raras e potencialmente patogênicas em genes da via da relina e dos canais de cálcio que parecem atuar de forma aditiva para aumentar o risco de TEA, afirmam os pesquisadores.
Descobertas
“O principal achado deste estudo é ter demonstrado a importância de genes que comandam duas vias metabólicas aparentemente diferentes agindo de forma única”, afirma Maria Rita Passos-Bueno, pesquisadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células Tronco, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). “Entender como essas vias convergem é o grande desafio da área da genética do autismo.”
O paciente que teve o material genético analisado primeiro, de forma individual, tem síndrome de Asperger, diz Passos-Bueno, que também assina o artigo internacional. “É uma forma leve e hoje ele tem uma carreira profissional bem-sucedida. É importante entendermos a genética desse grupo de indivíduos, que normalmente apresentam casos mais leves”, afirma a pesquisadora.
Todo o trabalho feito em conjunto por brasileiros e canadenses é realizado in vitro. Os pesquisadores utilizam, como modelo experimental, células progenitoras neurais derivadas de células-tronco pluripotentes induzidas tanto do paciente quanto dos indivíduos controle para traçar os impactos das mutações genéticas nas vias neurobiológicas.
São poucos os estudos, até hoje, que mergulharam nas interações genéticas existentes entre as diferentes variantes raras e potencialmente deletérias encontradas nos pacientes. Os investigadores também não sabem quantas variantes são necessárias para deflagrar o TEA. O estudo realizado agora, ressalta Sertié, sugere que os canais de cálcio e via da relina podem estar por trás do transtorno autista, mas ainda existem muitos passos até que isso fique totalmente assegurado.
“A ideia agora é reconstituir todo o processo, corrigindo as mutações em sistemas 3D. Ou mesmo as induzindo em indivíduos em um grupo de controle”, explica a pesquisadora do Einstein. De acordo com ela, outro passo futuro deverá ser o de tentar reconstituir o fenótipo de TEA por meio de medicamentos. “Também é importante saber em que momento ocorrem as mutações.”
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