Para religar os saberes
Por que a pesquisa em saúde demanda maior envolvimento com questões ambientais
O quadro socioambiental que caracteriza as sociedades contemporâneas revela que o impacto dos humanos sobre o meio ambiente causa alterações cada vez mais complexas, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. Nessa direção, o tema da sustentabilidade tem assumido papel central na reflexão sobre as dimensões do desenvolvimento e das alternativas que se configuram.
Uma análise dos impactos antropogênicos nos ecossistemas demonstra que o processo de busca de recursos materiais e melhores condições de vida para crescentes populações vem gerando e exacerbando forças diretas e indiretas de impactos que, por sua vez, alteram a capacidade de provimento de serviços ecossistêmicos – os quais são essenciais no suporte à qualidade de vida dos humanos.
Estas amplas cadeias de causas e consequências, como no caso das mudanças climáticas globais e respectivos fenômenos, tendem a incidir na saúde sob diferentes escalas.
A ampla combinação de fatores determinantes da saúde e da qualidade de vida humana pode ilustrar o gigantesco desafio interdisciplinar de se analisar o contexto de mudanças climáticas globais. A relação entre epidemiologia humana e mudanças ambientais é cada vez mais clara, quando observada a sobreposição da influência de fatores ambientais de distintas categorias.
Basta ver como grandes parcelas da população são afetadas pelo saneamento básico precário, pela poluição atmosférica e por riscos inerentes a desastres climáticos. Falamos aqui especialmente dos grupos de habitantes mais pobres de centros urbanos de países em desenvolvimento.
Isso nos remete a uma necessária reflexão sobre os desafios que estão colocados para mudar as formas de pensar e agir em torno de questões de saúde e socioambientais, numa perspectiva contemporânea.
Torna-se impossível resolver os crescentes e complexos problemas que afetam a sociedade contemporânea, e reverter suas causas, sem que ocorra uma mudança radical nos sistemas de conhecimento, valores e comportamentos gerados pela dinâmica de racionalidade existente, fundada no aspecto econômico do desenvolvimento.
O desafio da interdisciplinaridade precisa ser visto como um processo de produção de conhecimento que busca estabelecer cortes transversais na compreensão e explicação em contextos de pesquisas, gerando desdobramentos no ensino.
Busca-se a interação entre disciplinas, superando-se a compartimentação científica provocada pela excessiva especialização e ampliando o diálogo com toda a sociedade. Enquanto combinação de várias áreas de conhecimento, pressupõe-se o desenvolvimento de metodologias interativas, configurando a abrangência de enfoque.
A preocupação em consolidar uma dinâmica de ensino e pesquisa desde uma perspectiva interdisciplinar enfatiza a importância dos processos sociais que determinam as formas de apropriação da natureza e suas transformações através da participação social na gestão dos recursos ambientais, levando em conta a dimensão evolutiva no sentido mais amplo, incluindo as conexões entre as diversidades biológica e cultural; assim como as práticas dos diversos atores sociais e o impacto de suas relações com o meio ambiente.
Para o sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015), viver em uma sociedade de risco significa que a capacidade de “controlar” efeitos colaterais e perigos produzidos pelas decisões tornou-se problemática – e os saberes podem servir para transformar os riscos imprevisíveis em riscos calculáveis, sem deixar de produzir novas imprevisibilidades.
O maior desafio é religar os saberes e romper com o reducionismo, abrindo espaço para o que o filósofo francês Edgar Morin denomina de “pensamento que sabe dos seus limites e da realidade das incertezas”.
Funtowicz e Ravetz, em trabalho publicado em 1997, baseados no reconhecimento da incerteza e da complexidade, propõem uma abordagem que denominam de “ciência pós-normal”. Essa abordagem tem nas “comunidades ampliadas de pares” a proposta de promover o diálogo e o trabalho colaborativo entre cientistas e outros atores sociais, respeitando diferentes campos do conhecimento científico e a diversidade de saberes tradicionais.
Diante de uma crise sanitária global, como a pandemia de Covid-19, e da incapacidade de se encontrar explicações para situações complexas e emergentes, com riscos elevados, a ampliação do diálogo pode acelerar a tomada de decisões.
A ênfase em práticas que estimulam a interdisciplinaridade e a transversalidade revela o grande potencial que existe para sair do lugar comum, especialmente em torno de temas que demandam mudanças de comportamento, como a questão da responsabilidade socioambiental.
Trata-se da importância de compreender a complexidade envolvida nos processos e o desafio de ter uma atitude mais reflexiva e atuante e, por conseguinte, incentivar que os cidadãos se tornem mais responsáveis, cuidadosos e engajados em processos colaborativos envolvendo saúde e meio ambiente.
Pedro Roberto Jacobi é sociólogo, livre-docente na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP. É membro da Integrated Assessment Society (TIAS) e do Conselho Estratégico do Programa USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
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