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28.09.2023 Comunicação

O desafio de comunicar preprints

Estudo avalia responsabilidades e carências da cobertura jornalística de trabalhos ainda não revisados por pares

Ilustração: Felipe Mayerle / Estúdio Voador

O uso dos chamados preprints como forma de divulgar resultados de pesquisas entrou da pior forma no radar do noticiário com a pandemia de Covid-19. Antes de explicar o porquê, cabe lembrar que preprints são estudos científicos ainda não revisados por pares, divulgados em plataformas de acesso aberto tão logo são produzidos. Dadas essas características, viu-se que, em meio à crise sanitária, estudos mal conduzidos defendendo o uso de cloroquina e outros medicamentos no tratamento da Covid-19 ganharam manchetes – como se expressassem verdades absolutas. 

Em uma discussão estritamente técnica, tais trabalhos seriam rapidamente descartados por suas falhas metodológicas. No entanto, aproveitando-se de plataformas de preprints, seus autores acabaram, no fim das contas, fornecendo “munição” para práticas negacionistas adotadas por políticos e gestores públicos.

Um estudo publicado na revista PLOS One analisou o uso de preprints por parte de jornalistas em momentos emergenciais – que o grupo de pesquisa qualifica como períodos de ciência pós-normal. “Esse termo descreve situações complexas e de alto risco caracterizadas por muita incerteza, necessidade urgente de tomada de decisão política e disputas sobre valores, e não só sobre evidências científicas”, explica uma das autoras da pesquisa, a psicóloga especialista em comunicação Alice Fleerackers, professora de Estudos Interdisciplinares na Universidade Simon Fraser, no Canadá.

Em entrevista ao Science Arena, Fleerackers diz que a resposta inicial à Covid-19 é um bom exemplo para contextualizar a ciência pós-normal. “Tomadores de decisão precisaram escolher rumos importantes sobre como controlar a propagação de um então novo vírus misterioso”, comenta Fleerackers. “Isso foi feito com base em evidências científicas produzidas a todo instante, em constante evolução, muitas deles disponíveis apenas em preprints em um primeiro momento.”

Tais decisões, sublinha Fleerackers, foram tomadas em meio a disputas políticas atreladas a valores, como, por exemplo, aqueles relacionados a discussões sobre se era moralmente aceitável impor vacinação obrigatória à população ou fechar comércios para proteger as pessoas.

Para a análise qualitativa liderada pela pesquisadora, foram entrevistados 19 jornalistas especializados em saúde e ciência que publicaram reportagens entre 1º de março e 30 de abril de 2021 nos seguintes veículos: New York Times, The Guardian, Wired, Popular Science, HealthDay, IFL Science, MedPage Today e News Medical.

De acordo com Fleerackers, observou-se que os jornalistas geralmente adotam novas práticas e normas para comunicar ciência quando estão diante de contextos “pós-normais” – e o uso de preprints pode ser entendido como uma dessas estratégias excepcionais.

Ao mesmo tempo, o trabalho conduzido por Fleerackers indica obstáculos que profissionais da imprensa enfrentam para realizar coberturas jornalísticas baseadas em preprints. Para muitos, falta expertise ou tempo adequado para compreender e avaliar com seriedade a relevância de uma pesquisa.

Uma questão inevitável é: essa limitação da imprensa vale para toda e qualquer publicação científica, incluindo artigos científicos que já passaram pelo crivo da revisão por pares?

“De fato, ainda não está claro se jornalistas conseguem sempre verificar a qualidade das pesquisas científicas, tenham elas passado pela revisão por pares ou não”, admite Fleerackers.

“Em geral, os jornalistas veem credibilidade na revisão por pares, entendida como uma forma de validação das descobertas pela comunidade científica. Nesse sentido, acreditam que artigos submetidos a esse processo foram colocados à prova por outros cientistas”, afirma Fleerackers. “Na prática, contudo, sabemos muito pouco sobre se a revisão por pares é um mecanismo realmente eficaz de controle de qualidade.”

Capacidade técnica de jornalistas

Na avaliação da pesquisadora, isso explica por que preprints são tão interessantes. Sem essa verificação externa dos pares, os jornalistas precisam usar outras estratégias para avaliar a relevância de resultados e conclusões de manuscritos depositados em repositórios de preprints.

O fato de isso ser tão desafiador levanta questões sobre a capacidade técnica de jornalistas de “aferir” a qualidade de produções científicas – particularmente em um meio midiático que os coloca sob pressão para produzir grandes volumes de notícias em prazos extremamente curtos.

“Adoraria ver mais apoio, como treinamentos, flexibilidade de tempo e recursos para jornalistas científicos, a fim de torná-los mais habilitados a escrever e falar sobre ciência, independentemente da revisão por pares”, avalia Fleerackers.

O estudo publicado pela pesquisadora e sua equipe sugere que a cobertura de preprints provavelmente continuará sendo praticada, mesmo com o fim da pandemia anunciado em maio de 2023. Para Fleerackers, isso pode ter implicações importantes para cientistas, jornalistas e o público que lê seus trabalhos. Não se trata de uma recomendação, adverte a pesquisadora, mas de uma constatação.

“Embora alguns dos jornalistas que entrevistamos hesitem em usar preprints além do contexto da pandemia, outros nos disseram que planejam continuar usando esse tipo de publicação científica”, informa Fleerackers.

O fato de preprints disponibilizarem resultados recém-descobertos em acesso livre e imediato dá ao jornalista a sensação de estar acompanhando a “ciência em movimento”, quase em tempo real – e isso confere ao preprint ares de novidade, “notícia quente”, algo almejado por jornalistas.

Já artigos submetidos a periódicos baseados na revisão por pares costumam demorar meses ou até mais de um ano para serem publicados, dado o longo processo de avaliação.

“Para alguns, por causa do acesso livre e de um vislumbre da ciência ‘em movimento’, em vez daquela conhecida meses e meses após a pesquisa ter sido realizada pela primeira vez.” Para outros, acrescenta Fleerackers, a percepção foi de que os preprints acabaram se tornando parte de suas rotinas de trabalho, um novo normal.

“É uma questão em aberto se relatar pré-impressões fora de situações de emergência é ‘bom’ ou ‘ruim’. É mais importante, na minha perspectiva, garantir que os jornalistas tenham o apoio de que precisam para cobrir os preprints com rigor.”

Todo cuidado é pouco

Os resultados da análise servem como lembrete de que toda ciência é provisória. “Tendemos a pensar nas descobertas científicas como ‘fatos’ ou ‘verdades absolutas’ e muitas vezes é assim que a pesquisa revisada por pares é divulgada na mídia ou ensinada nas universidades”, avalia Fleerackers. Contudo, diz ele, a atividade científica é um processo contínuo e reiterado, no qual novos estudos se baseiam, problematizam e, às vezes, contradizem descobertas anteriores.

Para administrar os riscos associados à natureza provisória da ciência, Fleerackers recomenda que os jornalistas sejam encorajados a comunicar incertezas e trazer novas descobertas para um contexto mais amplo, considerando o maior volume possível de evidências, em vez de relatar estudos isolados. “Tais aspectos são marcadores de qualidade para qualquer jornalismo científico, mas indiscutivelmente ainda mais importantes ao relatar descobertas preliminares e emergentes.”

Antes da pandemia, os preprints nunca foram uma preocupação porque simplesmente não interessavam à comunidade externa – podiam ser bons ou ruins, mas ainda não chancelados.

“O famoso paper da cloroquina é metodologicamente falho, com sérios problemas, e se limitado à comunidade científica teria gente criticando ou passaria desapercebido, porque é muito ruim”, observa o físico Peter Schulz, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e estudioso da comunicação científica (leia entrevista concedida ao Science Arena).

“No entanto, em um contexto de início da pandemia, com o mundo inteiro assustado, esses repositórios de preprints, com acesso aberto, tornaram-se fonte fácil de achados científicos que logo eram alçados à categoria de grandes descobertas na imprensa”, comenta Schulz.

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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