Disparidades no paper
Mulheres tendem a receber menos crédito pela autoria de artigos e patentes do que homens, revela estudo
Menos de 6% dos prêmios Nobel concedidos nas categorias científicas foram atribuídos a mulheres, de acordo com informações disponíveis no site da premiação. A desigualdade de gênero também é nítida quando analisados dados de produção científica. Nesse caso, nota-se que mulheres tendem a receber menos crédito pela autoria de artigos e patentes do que homens em grupos de pesquisa. É o que mostra um estudo publicado na revista Nature, liderado pelo economista Matthew Ross, pesquisador da Universidade Northeastern, nos Estados Unidos.
Ross e sua equipe analisaram dados do período de 2013 a 2016, referentes a quase 10 mil grupos de pesquisa vinculados a mais de 50 instituições de ensino norte-americanas. Ao todo, foram consideradas informações de 128.859 pesquisadores responsáveis pela produção de aproximadamente 39 mil papers e 7 mil patentes. Um dos achados resultantes da investigação é que a probabilidade de mulheres cientistas levarem os créditos por artigos científicos e patentes foi, respectivamente, 13,2% e 58,4% menor do que a dos homens no mesmo grupo de pesquisa.
Também foi aplicado um questionário a cerca de 2.400 pesquisadores. Observou-se que 43% das mulheres já tinham sido excluídas da autoria de algum paper do qual participaram. No caso nos homens, o índice foi de 38%. Outro aspecto identificado no estudo foi as chances reduzidas de as mulheres aparecerem como autoras em artigos de alto impacto. De acordo com os autores da pesquisa, essa dinâmica se expressa em praticamente todas as áreas do conhecimento e em todos os estágios da carreira científica.
As conclusões do estudo encontram respaldo em casos emblemáticos de invisibilidade e descrédito das mulheres na ciência. Um exemplo concreto é o da física austríaca Lise Meitner (1878-1968), que teve papel relevante na descoberta da fissão nuclear na primeira metade do século XX. Por décadas, Meitner trabalhou conjuntamente com o químico alemão Otto Hahn (1879-1968) no Instituto Kaiser Wilhelm, em Berlim.
Com a ascensão do nazismo, Meitner – que era judia – mudou-se para a Suécia em 1938, mas continuou em contato com Hahn por meio de cartas. No ano seguinte, o cientista alemão publicou as evidências da fissão nuclear, sem dar o crédito da descoberta à colega. Em 1944, Hahn foi laureado com o Nobel de Química, que ignorou as contribuições de Meitner.
Injustiça
O estudo conduzido por Ross sugere que a desigualdade de gênero na ciência está atrelada, entre outros fatores, à falta de reconhecimento das mulheres em trabalhos que resultam em descobertas inovadoras. Outras pesquisas apontam para esse cenário. Um artigo publicado em setembro de 2021 na revista Science Advances também mostra que as mulheres são mais propensas a vivenciar divergências em relação à autoria de trabalhos científicos.
No estudo, liderado por Cassidy R. Sugimoto, do Instituto de Tecnologia da Georgia, em Atlanta, nos Estados Unidos, argumenta-se que a autoria científica está “repleta de injustiças” e casos de má conduta. Para chegar a essa conclusão, Sugimoto e sua equipe aplicaram um questionário a mais de 5.500 pesquisadores de todo o mundo, atuando nas áreas de ciências naturais, ciências médicas, ciências sociais e engenharias. Desse total, 36% dos respondentes se identificaram como mulheres.
Os resultados mostram que mais da metade (53,2%) dos entrevistados relataram já ter enfrentado discordâncias na autoria de trabalhos dos quais participaram, seja na nomeação dos autores, seja na ordem em que aparecem assinando um artigo. Vale lembrar que, geralmente, o primeiro autor é responsável pelas contribuições principais da pesquisa, enquanto o último autor é o líder do projeto.
De acordo com a pesquisa, “as mulheres são mais propensas do que os homens a ter de lidar com
discordâncias em relação à ordem de autores em artigos científicos.” As diferenças de gênero nas
discordâncias foram mais extremas nas ciências naturais e nas engenharias, onde as mulheres
representam a menor proporção de pesquisadores. Nesse caso, as chances de as mulheres
relatarem discordância de nomeação são 50% maiores do que as dos homens.
Outro estudo, publicado em abril de 2022 na PLOS ONE, investigou o problema da sub-representação das
mulheres entre autores de artigos científicos exclusivamente em periódicos da área médica.
Realizado por pesquisadores da Universidade do Estado de Nova York, o trabalho analisou 1.080
artigos publicados entre 2002 e 2019 nas revistas The Journal of the American Medical Association
(JAMA), The Lancet e The England Journal of Medicine (NEJM).
Na posição de primeiro autor, as mulheres aparecem em apenas 27% dos papers, ainda que constituam cerca de 37% dos docentes das faculdades de medicina nos Estados Unidos. Já como último autor, elas aparecem em apenas 19% dos artigos. A proporção de mulheres assinando como primeiro autor foi maior no Jama (cerca de 35%). Na avaliação dos autores da pesquisa, as diferenças de gênero na autoria de trabalhos acadêmicos podem estar contribuindo para perpetuar outras discrepâncias entre homens e mulheres nas ciências médicas.
Cabe ressaltar que, além da quantidade de papers publicados em periódicos médicos de prestígio, a posição atribuída ao autor em um artigo (por exemplo, assinando por último, na função de líder) também é um aspecto levado em consideração no momento de pleitear financiamentos, promoções e cargos de chefia. Por isso, a discussão sobre as dinâmicas de poder relacionadas ao gênero é necessária no âmbito da carreira de pesquisador, a fim estimular uma distribuição mais equitativa dos créditos de artigos científicos.
Esteriótipos e dupla jornada
A engenheira química Maria Cristina Soares Guimarães, pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), conta que já teve seu nome excluído de estudos dos quais colaborou. De acordo com ela, a prática não é mais comum do que se pode imaginar.
“Passei por situações que levei anos para entender”, comenta Guimarães. “No geral, as mulheres ainda são vistas como frágeis, ingênuas e despreparadas para lidar com o ambiente de um laboratório de pesquisa. Mesmo fazendo um bom trabalho, muitas vezes precisei dispender mais energia para mostrar a qualidade do que fiz. Ainda assim, apagaram meu nome em alguns trabalhos.”
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta que, apesar de as mulheres serem maioria entre doutores em diversas áreas do conhecimento, chegando a representar cerca de 54% dos estudantes de doutorado no país, elas não estão tão bem representadas nos níveis mais altos da carreira científica, o que pode influenciar a autoria principal e a representação em grupos de pesquisa.
Tanto no Brasil quanto em outros países, a participação de mulheres em pesquisas científicas varia de acordo com o campo do conhecimento. Enquanto nas ciências da vida e saúde as mulheres são mais de 60% do total de pesquisadores (em termos globais), na matemática e na computação elas representam menos de 25%.
Além dos estereótipos e preconceitos de gênero enfrentados diariamente no meio acadêmico, grande parte das pesquisadoras lidam com a dupla jornada de trabalho e afazeres domésticos – um obstáculo para mulheres em vários segmentos sociais. “Há relatos de mulheres cientistas que precisam levar seus filhos para o laboratório, porque a responsabilidade de criação está completamente voltada a elas”, conta Hellowa Corrêa, especialista em divulgação científica e mestranda em história das ciências na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Também sabemos que algumas mulheres aceitam trabalhar de graça ou com bolsas inferiores às recebidas por homens”, relata Corrêa, que faz parte do movimento Mulheres na Ciência. A iniciativa começou nas mídias sociais, com o objetivo de reunir mulheres cientistas brasileiras a fim de debater questões de gênero na pesquisa, desabafar e buscar soluções concretas para os problemas. Hoje, no Facebook, a comunidade conta com mais de 2.200 pesquisadoras de várias áreas do conhecimento.
Em busca de dados
A bióloga Fernanda Staniscuaski sabe bem dos percalços que se apresentam no caminho das mulheres e afetam a produtividade acadêmica. Com a chegada dos filhos, a pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) viu diminuir os recursos investidos em seus projetos de pesquisa. “Foi a partir dessa experiência que passei a estudar os impactos da maternidade no âmbito acadêmico brasileiro”, explica Staniscuaski, que integra o projeto Parent in Science, criado em 2017.
A iniciativa reúne pesquisadores de várias partes do mundo com a missão de investigar os desafios da maternidade na carreira científica e gerar dados que ajudem a entender em profundidade como o cuidado com os filhos sobrecarrega mulheres cientistas.
Com base em levantamentos, o grupo vem demonstrando que um dos principais problemas enfrentados pelas cientistas que se tornam mães é conseguir obter financiamento para suas pesquisas. O obstáculo está diretamente relacionado à lógica de produtividade que norteia boa parte das avaliações de desempenho e os estágios da progressão profissional de pesquisadores.
Os esforços do Parent in Science têm surtido efeito no país. Em 2021, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) abriu a possibilidade de as pesquisadoras indicarem seus períodos de licença-maternidade na plataforma Lattes, que reúne mais de 4 milhões de currículos acadêmicos. Com isso, espera-se que agências de apoio à pesquisa considerem essa informação no momento de analisar a produtividade das cientistas que têm filhos.
Desde 2017, bolsistas do CNPq e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) já haviam conquistado o direito de afastamento das atividades acadêmicas por maternidade ou adoção, sem deixar de receber a bolsa – uma medida que já era adotada desde 2013 pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Apesar dos avanços, Staniscuaski chama a atenção para o fato de que ainda são necessárias mais iniciativas como essas para que a igualdade de gênero seja alcançada na ciência. “Precisamos de mais estudos e dados capazes de revelar o perfil dos pesquisadores brasileiros, a fim de elaborar políticas públicas para a promoção da equidade de gênero.”
Um levantamento do Parent in Science feito durante a pandemia de Covid-19 em 2020 mostrou que a parentalidade e o trabalho remoto estavam sendo um impasse para mães e pais pesquisadores. No entanto, o a produtividade das mulheres era mais afetada do que a dos homens: 52% das cientistas com filhos não conseguiam concluir seus artigos científicos – no caso dos homens, o índice foi de 38%. De um modo geral, os cientistas que mais conseguiram trabalhar de casa foram aqueles que não tinham a dupla jornada da maternidade ou da paternidade.
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