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03.06.2023 Extensão

A vez da divulgação científica

Pesquisadores buscam desenvolver novas habilidades para atuar em iniciativas de comunicação da ciência

Bia Guimarães e Sarah Azoubel do podcast 37 graus | Crédito: Instituto Serrapilheira

Nos últimos anos, vários cientistas passaram a conciliar atividades de pesquisa e de divulgação científica. Muitos chegam a interromper a carreira a fim de dedicar tempo integral à produção de conteúdo para as mídias sociais. Seja como for, a trajetória profissional como divulgador de ciência exige preparo específico. São inúmeros os desafios, a começar pelo desenvolvimento de habilidade de comunicação e a necessidade de avaliar os riscos quando se cogita abandonar a carreira acadêmica e se voltar exclusivamente a uma nova vocação. A mudança não é trivial e requer planejamento. Mas, afinal, é possível sobreviver como divulgador científico no Brasil? E por onde começar? Especialistas ouvidos pelo ScienceArena buscam fornecer algumas respostas.

A bióloga Sarah Azoubel, co-fundadora da produtora Lab37 e apresentadora do podcast 37 Graus, percebeu que não queria continuar fazendo pesquisa quando estava na metade do doutorado, concluído em 2016 na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. “Estava trilhando uma carreira bem acadêmica, pesquisando desde a graduação”, diz. “No entanto, não tinha claro o que realmente queria fazer, porque não tinha muita experiência longe da bancada do laboratório.”

O fato de ter uma mãe jornalista possivelmente estimulou o interesse de Azoubel pela área da comunicação social. “Percebi que, no decorrer do doutorado, uma das coisas que mais me dava prazer era falar sobre meu trabalho e preparar materiais gráficos para apresentações”, conta a bióloga, que até então dedicava-se a projetos de divulgação voltados para os pares.

Ao retornar para o Brasil, Azoubel participou de um evento no Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde havia se graduado. Na ocasião, ouviu falar sobre a especialização lato sensu em jornalismo científico oferecida desde 1999 pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp.

Além da especialização, o laboratório foi pioneiro ao lançar, em 2008, um programa de mestrado em Divulgação Científica e Cultural – o que fez dele um dos principais responsáveis pelo amadurecimento da pesquisa em divulgação científica no Brasil nos últimos tempos.

“Eu não sabia do curso. Fiquei interessada na hora e logo me inscrevi”, lembra Azoubel. “Ao aprender sobre o jornalismo científico, ganhei um novo conjunto de ferramentas para lidar com diferentes temáticas da ciência, e eu sentia falta disso. Geralmente, quando fazemos pesquisa, ficamos muito centrados em questões específicas do nosso projeto. E o que gosto mesmo é de poder tratar dos mais diversos tópicos possíveis em áreas do conhecimento como física, química, astronomia e ecologia.”

Investir em formação específica

Hugo Fernandes, doutor em zoologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), é divulgador de ciência há 13 anos. Com experiência em rádio e TV, mantém um perfil no Instagram com mais de 140 mil seguidores. “Meu interesse pela divulgação científica surgiu em 2010, quando estava no mestrado, e foi por revolta”, diz ele. “A coleção de répteis e anfíbios do Instituto Butantan, em São Paulo, foi destruída por um incêndio naquele ano. Procurando textos e reportagens sobre o assunto, encontrei pouca coisa. Resolvi escrever minha própria crônica e ela circulou bastante na internet. Então comecei a escrever textos críticos sobre ciência.”

Já no caso do biólogo Guilherme Longo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), foi a vontade de estar mais próximo da realidade das pessoas que o fez se aventurar na divulgação científica. “Conforme avançava na carreira de cientista, percebi que, no geral, o que fazia estava muito distante da realidade da maioria dos amigos e familiares”, explica Longo, que mantém o perfil “De Olho nos Corais” no Instagram. “A partir de então, ganhou força o desejo de tornar a ciência um componente real da vida das pessoas.”

O perfil criado por Longo é dedicado a temas como ecologia e biologia marinha que, nas palavras dele, muitas vezes passam batido no cotidiano, especialmente nos grandes centros urbanos. “Meu objetivo é compartilhar com o público os processos envolvidos na atividade de pesquisas nessas áreas do conhecimento e mostrar como as descobertas marítimas podem ser fascinantes.”

Azoubel, Fernandes e Longo são unânimes em recomendar que interessados em fazer divulgação científica busquem preparação no campo da comunicação. “Fazer cursos e se engajar em projetos de divulgação é uma boa maneira de começar a ter contato com divulgadores mais experientes e que podem servir de referência”, sugere Azoubel, lembrando que foi durante a especialização no Labjor que ela conheceu sua atual sócia, a jornalista Beatriz Guimarães. Para Azoubel, é importante estar inserido em ambientes onde circulam pessoas que fazem o que você deseja fazer. “Caso contrário, fica mais difícil migrar de carreira.”

Fernandes ressalta que, mais do que uma prática profissional, a divulgação científica é uma área do conhecimento. “Isso significa que ela se configura como campo de pesquisa que gera novos conhecimentos reunidos em livros, artigos, cursos de extensão e programas de pós-graduação”, esclarece Fernandes. “O conselho que dou é: estude, não tente reinventar a roda. Existem técnicas para divulgar ciência e elas estão disponíveis.”

Embora nunca tenha passado por treinamento formal nessa área, Longo conta que sempre teve contato com iniciativas de divulgação, mesmo antes da graduação. “Além disso, a atuação como professor me desafiou, desde cedo, a comunicar conceitos científicos complexos de forma mais acessível”, observa o docente. “A experiência da sala de aula pode ampliar a capacidade de manter o interesse dos alunos e de elaborar recursos visuais, como vídeos e animações, para complementar o material pedagógico. Tudo isso ajudou a aprimorar minhas habilidades de comunicação.”

“Não se trata de um hobby”

Além de Azoubel e Guimarães, outra dupla que integra o rol de cientistas que se dedicam integralmente à divulgação científica é formada pela bióloga Ana Bonassa e a bioquímica Laura Marise, do canal no Youtube Nunca vi 1 Cientista. Bonassa é doutora em ciências pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em metabolismo energético. Marise é doutora em biociências e biotecnologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com pós-doutorado em bioquímica.

O canal foi lançado em 2018, com o intuito de difundir conhecimento científico em linguagem acessível, com credibilidade e uma boa dose de bom humor. Em quatro anos, elas se tornaram referência na área e criaram uma comunidade engajada: são mais de 190 mil inscritos no Youtube e 155 mil seguidores no Instagram.

Atualmente, as duas lideram uma equipe que envolve mais de 40 pessoas, entre colaboradores de edição e roteiro. “Ninguém larga tudo, do dia para a noite, com o objetivo de trabalhar com produção de conteúdo científico, isso é inviável”, afirma Marise. “Só consegui deixar o estágio de pós-doutorado em 2021, três anos após iniciar o canal. A questão toda é saber olhar para dentro de si e entender o que realmente faz sentido na sua vida”, diz a divulgadora. “Eu me encontrei e tenho me realizado profissionalmente, mais como comunicadora do que como cientista”, arremata.

É fundamental avaliar se a produção de conteúdo de divulgação científica será algo a mais em sua rotina, ou se a pretensão é de fato viabilizar uma nova carreira

Por conta de sua atuação nesses e em outros projetos, Fontes-Dutra viu crescer sua influência nas mídias sociais, especialmente no Twitter, onde tem mais de 96 mil seguidores. Para ela, conhecer as particularidades das mídias sociais é muito importante. “Elas muitas vezes têm predominância de um público específico, que geralmente gosta de textos mais curtos e tem dado preferência a formatos como vídeos e podcasts.”

A pesquisadora da UFRGS ressalta a importância de ter claro para quem você deseja comunicar a ciência. “Se é um público mais jovem ou mais velho, se é acadêmico, se não sabe sobre o assunto, se é para especialistas de uma área. É importante pensar primeiro quem é seu público-alvo, porque a partir daí começam a se delinear outras perguntas: qual a melhor linguagem para usar? Onde esse público está? Está mais no Twitter, no Instagram ou no TikTok? Responder essas questões ajuda a decidir a linguagem que você adotará e em qual rede social faz sentido focar esforços. Essas são as primeiras perguntas que vão delinear o que vem na sequência”, observa Fontes-Dutra.

Almejar uma audiência mais ampla é desafiador, algo bastante diferente do que estabelecer pontes com pares acadêmicos. Para ser eficiente, indica Marise, é preciso assumir que o interlocutor pode nunca ter tido contato com o assunto. “Precisa simplificar a explicação, fazendo escolhas do que pode ser omitido sem comprometer a veracidade da informação ou dar margem a interpretações erradas”, diz ela. “É muito mais complexo do que só ‘transmitir informação’, como muita gente pensa que é a divulgação científica”. No caso do Nunca Vi 1 Cientista, grande parte do público está na faixa de 25 a 44 anos (56% do público no Youtube e 73% no Instagram). O leque de interesses, portanto, precisa ser diversificado.

Encontre seu nicho

“Pessoalmente não recomendaria, hoje em dia, que alguém que tenha interesse pela divulgação científica abandone tudo para se dedicar unicamente a essa atividade”, diz o psicólogo Altay de Souza, pesquisador do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Para quem deseja se engajar numa atividade de divulgação, eu sugiro começar com um número fixo de horas por semana, sem comprometer outros tipos de renda”, avalia Souza, que junto com o publicitário Ken Fujioka comanda o podcast Naruhodo.

A iniciativa, que busca divulgar ciência de maneira fácil e com humor, está no seu sexto ano e tem uma média de 60 mil plays por episódio. “O Naruhodo consegue ter um rendimento graças a nosso grupo de apoiadores. Com esses recursos provenientes de doação, a gente consegue pagar um editor de áudio e hospedar os episódios em um servidor”, explica Souza.

Ele e os demais entrevistados nesta reportagem concordam que o sucesso consiste em encontrar um caminho certeiro dentre tantas possibilidades abertas pelos avanços tecnológicos dos últimos anos. “É preciso se sentir confortável. Não adianta gravar vídeos se não se sente bem diante das câmeras. O público percebe isso. Uma dica valiosa então seria: descubra sua habilidade. Há diversas mídias para explorar: histórias em quadrinhos, música, vídeos, podcast”, diz Bonassa, do canal Nunca Vi 1 Cientista. “Além disso, treino e feedback são importantíssimos. Falar com as pessoas e ver o que elas entendem da mensagem que está sendo transmitida também são bases da boa comunicação.”

Também se deve ter em mente que, embora a divulgação científica possa não ser a principal fonte de renda para a maioria dos divulgadores, a atividade é capaz de criar oportunidades de trabalho e abrir caminhos para novas empreitadas profissionais, inclusive colaborações de pesquisa. “Apesar de ter ganhado dimensão, o podcast 37 graus não é a única coisa que faço”, ressalta Azoubel. “Também dou cursos de produção e edição de áudio e elaboração de roteiro. Além disso, ofereço consultoria em comunicação científica e em técnicas narrativas.” Azoubel ainda mantém um site sobre produção de podcasts narrativos.

De acordo com Natasha Felizi, diretora de Divulgação Científica do Instituto Serrapilheira,  instituição privada de fomento à pesquisa sediada no Rio de Janeiro, não há uma estratégia de apoio específica da entidade para cientistas que decidem mudar de carreira – da acadêmica para a divulgação científica. “Nem todos os divulgadores científicos que apoiamos são cientistas. Alguns vêm da educação ou do jornalismo.” O apoio do instituto consiste principalmente em financiamento e redes de contato com cientistas e outros divulgadores. “Essa parte foi prejudicada com a pandemia de Covid-19 e a ausência de eventos presenciais, mas sempre que acontece uma chamada pública há um incentivo para articulação entre projetos”, explica Felizi.

“Observamos que, com a pandemia, a ciência ficou em evidência, passou a fazer parte das conversas informais. Cientistas e divulgadores científicos se transformaram em fontes de informação para setores importantes da população”, diz Felizi. “Além disso, nos últimos anos, surgiram no Brasil novas instituições que se dedicam ao tema, como o próprio Serrapilheira. Por ser um instituto que financia projetos de divulgação, a disponibilidade de recursos e a recorrência das chamadas públicas contribuíram para a movimentação desse campo.”

O divulgador Hugo Fernandes chama a atenção para o fato de que esse cenário efervescente era praticamente inexistente há apenas 10 anos. “Hoje, no entanto, esse mercado é latente. Dá para fazer”, afirma. “Não existe uma receita a ser seguida. Há pessoas que seguiram diversas abordagens, em termos de storytelling, frequência de vídeo, assuntos abordados, mas existem algumas intersecções”, alerta Fernandes. “A primeira é a constância: ser constante é importante nesse mercado. A segunda é ser inovador. Dá para atingir milhões de pessoas com qualidade mediana – me refiro a padrão técnico – de áudio, vídeo. No entanto, quem está alcançando grandes dígitos de seguidores também investiu na qualidade do produto.”

* É permitida a republicação das reportagens e artigos em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND.
O texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, incluindo a fonte (Science Arena).

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